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Dez pontos sobre vacina contra a Covid-19 e relação de trabalho


Pois bem, todos os programas de redução de riscos terão de ser revistos e redimencionados a partir da necessidade de vacinação dos empregados, a contar da disponibilidade da vacina contra a Covid-19 e da eventual obrigatoriedade a partir dos julgamentos das ADIs 6.586 e 6.587 e do ARE 1.267.897.


Por enquanto não existe lei, apenas acena-se sobre a medida, a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 [1]. A Secretaria Especial de Previdência e Trabalho editou a Nota Técnica SEI nº 56376/2020/ME, esclarecendo que, para fins previdenciários, a Covid-19 constituirá doença ocupacional após a realização de perícia médica delineando o nexo causal entre o trabalho e a contaminação do empregado, já que a Covid-19 [2], em princípio, não o é, na interpretação da Lei 8213/91, mantida pelo STF na ADI 6362.


Algumas questões são importantes e as elencamos em dez pontos:


1) Veja-se que a vacina poderia ser comparada a um EPI, mas nesse caso deveria ter certificado de aprovação (CA) a ser pedido pelo fabricante, mesmo que em caso de vacina já aprovada pela Anvisa. Não sabemos se, diante da urgência da pandemia, alguma das fabricantes de vacinas teria interesse em se submeter ao órgão competente e aos trâmites burocráticos no Brasil. Também há o problema de que se considerarmos a vacina como EPI ela deveria ser fornecida gratuitamente pelo empregador, mas parece que a obrigação é do Estado, e não do empregador, sendo que este último não poderia ser excessivamente onerado. Ademais, pode-se entender que a vacina, ao invés de EPI (individual), poderia estar analogicamente associada a um EPC (equipamento de uso coletivo), visto seus desdobramentos para com a comunidade empresarial.


2) O STF já entendeu pela constitucionalidade de eventual imposição obrigatória da vacina, mas, para ser obrigatória, deve estar disponível, e obrigar a vacinação parece que estaria extrapolando o poder da organização patronal. Cumpre lembrar que como a saúde é dever de todos, pela interpretação do artigo 196 da CF/88 temos que aqui a obrigação de cuidar-se e cuidar dos outros parece ser uma obrigação da comunidade empresarial, vista como unidade produtiva que deve preservar a vida e a higidez de todos os envolvidos, conforme teoria comunitária da relação de emprego preconizada pela juslaborista portuguesa Palma Ramalho.


3) Há a especificidade dos profissionais da saúde, para os quais, de fato, a vacina será obrigatória, conforme NR 32 da Portaria 3214/78. De acordo com a Recomendação de Emprego e Trabalho Digno para a Paz e Resiliência da OIT, (N.º 205), 2017, que é uma orientação de respostas dos governos à crise, deverá promover condições de trabalho seguras e dignas incluindo a disponibilização de equipamento de proteção individual e assistência médica a todos os trabalhadores. Não seria correto solicitar a profissionais de saúde que cuidassem de doentes infetados sem medidas adequadas de SST, incluindo os EPI adequados, entre outras medidas protetivas [3].


4) Para a passagem do trabalho telepresencial para o presencial, o empregado poderia opor-se justamente quanto ao retorno se inexistir a vacina, num exercício laboral do jus resistentiae, que é o direito legítimo de oposição a ordens ilegais ou abusivas do empregador e que, via de regra, se colocam quando o empregador extrapola o jus variandi, que é o direito de alterar legitimamente as condições de trabalho dentro da esfera do poder diretivo.


5) A Convenção 155 da OIT — norma internacional internalizada pelo Brasil que refere que trabalhadores e os seus representantes devem cooperar com o empregador no domínio da SST (segurança e saúde no trabalho, Convenção 155, artigo 19º). O papel da empresa é orientar e, mais do que isso, incentivar que a pessoa se imunize e por parte do trabalhador devem ser tomados cuidados com a sua própria segurança e a de outras pessoas que possam ser afetadas pelos seus atos ou omissões no trabalho; cumprir as instruções dadas para a sua própria segurança e saúde e as de outras pessoas; usar dispositivos de segurança e equipamento de proteção corretamente, além de informar imediatamente o seu superior hierárquico de qualquer situação que represente um perigo e que não possa ser corrigida no âmbito do trabalho. Essa convenção prevê até o direito de retirada, que é a possibilidade de não trabalho diante de condições ambientais adversas [4].


6) Há possibilidade de aplicação de justas causas tanto para o empregado como para o empregador (pedido de rescisão indireta), em hipóteses elencadas nos artigos 482 e 483 da CLT. Há ainda a possibilidade de greve ambiental.


7) Quanto ao ingresso no emprego, a Portaria 597/04 do Ministério da Saúde autoriza que instituições públicas ou privadas exijam comprovantes de vacina.


8) Importante lembrar que temos pela Convenção 111 da OIT (discriminação em matéria de emprego e ocupação) o conceito de discriminação indireta, que pode ser resumida na prática patronal aparentemente neutra que traz impactos desproporcionais em pessoa ou grupos. Para a Convenção 11 da OIT, em seu artigo 1º.1, "a", o termo "discriminação" compreende toda distinção, exclusão ou preferência fundada em raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão [5]. Isso também na esfera da saúde ocupacional pode ocorrer com relação à vacina. Sinale-se que ainda não temos vacina para todos e, mesmo para que os que pretendem se vacinar por ora, a obrigatoriedade é impossível e discriminatória diante do princípio da legalidade.


9) Considera-se que 22% da população brasileira pretende não tomar a vacina, conforme refere pesquisa do Datafolha feita ao final de 2020 [6]. Isso preocupa e faz questionar a obrigatoriedade da vacina nas relações de trabalho, sobretudo com relação aos tópicos acima mencionados. O papel da empresa será fundamental quanto à formação do trabalhador para os cuidados com sua saúde e dos demais e a informação, visto que o não cuidado do trabalhador pode, inclusive, configurar infração penal [7].


10) A concepção fraternalista [8] e relacional laboral articula as liberdades no interior da relação de trabalho para que haja o diálogo e a paz social, sendo as normas coletivas e o direito coletivo um grande aliado das realidades laborais em tempos pandêmicos. Por esse motivo, negociações coletivas seriam as melhores formas de solucionar os impasses decorrentes da nova situação da vacina, além de atuarem no permissivo normativo do artigo 611 da CLT.


Considerações finais

A vacinação contra a Covid-19 aqui no Brasil segue pelo Plano Nacional de Imunização: pela rede pública e de forma voluntária. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), na decisão da liberação de uso emergencial da Coronavac e da vacina de Oxford/AstraZeneca, afirmou que não há tratamento eficiente contra a Covid-19 e a vacina é, por enquanto, o único meio, que sequer está disponível a todos.


A partir da interpretação do conjunto complexo de normativas laborais e jurisprudência do STF acima referidas, nada há que claramente condicione a manutenção ou ingresso no emprego à necessidade de vacinação, ou que penalize a recusa vacinal. No mesmo sentido, pela não exigência de vacinação obrigatória no âmbito da relação laboral, tem sido as legislações italiana e alemã [9]. A presidente do Comitê Econômico e Social Europeu (Cese), Christa Schweng, admitiu, entretanto, em 2020 a possibilidade de uma empresa se negar a contratar um trabalhador que se recuse a ser vacinado contra a Covid-19 [10].

No entanto, diante da possibilidade de legislação concorrente no âmbito da saúde, temos que todas as esferas estatais podem editar medidas exigindo a vacinação obrigatória num futuro próximo, em que eventual recusa vacinal não justificada aí, sim, acarretará consequências, entre as quais até motivo de exclusão do empregado dos quadros da empresa. Toda a situação deverá ser vista no caso a caso.


Ora, o uso de máscara, o isolamento social, o cuidado com a higiene, esses comportamentos cruciais no enfrentamento da pandemia não são conteúdo de deveres estatais, mas são deveres recíprocos das pessoas — deveres de fraternidade que se impõem para empregados e empregadores no desempenho das atividades oriundas da relação de emprego. Ou seja, numa abordagem "fraternalista" da pandemia, em que todos são responsáveis por todos, a fraternidade é uma relação de simetria, na qual os deveres repartem-se entre os polos da relação em função do cuidado e responsabilidades recíprocas. Em uma pandemia todos são vulneráveis e todos dependem de todos. A vacina não controla totalmente a difusão do vírus, mas limita em certa medida a pandemia e reflete uma necessária atenção para com o todo. É evidente que a pandemia será diminuída apenas com a participação da sociedade. Se todos admitissem a possibilidade de vacina, estaríamos prevenindo uma série de dificuldades de saúde e mesmo contratuais laborais, visto que operamos na esfera da prevenção de riscos que são ainda desconhecidos pela ciência.


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Fonter: @ConJur

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